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Por um novo Haiti: conheça a ação voluntária de um brasileiro no país

O avião pousou no Aeroporto Internacional Toussaint Louverture, em Porto Príncipe. À primeira vista, nada incomum. Era um aeroporto como qualquer outro do Brasil. Filipe Coutinho, 22, já estava em solo haitiano, com o coração cheio de expectativas em poder fazer algo por um país que precisava tanto – pelo menos era o que tinha ouvido falar.

A ansiedade de deixar a zona de conforto e iniciar uma nova fase em um local desconhecido não era novidade para Filipe. Nascido em Jacutinga, Minas Gerais, decidiu, em 2009, abandonar emprego e a casa onde vivia com seus pais e duas irmãs e ir para São Paulo estudar engenharia civil. O recomeço em uma nova cidade ensinou o jovem, com 19 anos na época, a não temer os novos desafios. No entanto, o que o esperava naquele país, era algo muito mais intenso do que poderia imaginar.

Ao sair do aeroporto, o primeiro choque cultural. Ao avistar a paisagem de destruição e desolação ao seu redor, sentiu uma vontade imediata de entrar no primeiro avião de volta para o Brasil. No centro da cidade, o que se via não era nada animador para quem acabara de chegar: ruas sem asfalto, casas destruídas e abandonadas, escombros, esgoto a céu aberto. Filipe respirou fundo, lembrou-se do motivo pelo qual estava lá. Recordou de outros que lá estiveram e disseram que, apesar de tudo, valia a pena. Queria provar por si mesmo que aquilo realmente valia a pena, e decidiu continuar sem olhar pra trás.

As histórias que ouviu, e que serviram de motivação naquele primeiro momento, saíram da boca de dois haitianos que conheceu em junho de 2012, em um evento sobre vocação e missão. Os dois homens estavam no Brasil para estudar, mas não tinham planos de morar permanentemente aqui. Sua intenção era aprender o máximo que pudessem, para voltar ao seu país e ajudá-lo de alguma forma. Relataram de forma precisa as necessidades do Haiti, e procuraram motivar pessoas a ir até lá oferecer ajuda. Filipe sentiu-se inspirado, e naquele mesmo dia preencheu uma ficha de inscrição para participar do projeto Por Um Novo Haiti, criado pela organização Junta de Missões Mundiais (JMM).

Pouco tempo depois, recebeu notícias de que duas viagens estavam planejadas para grupos de voluntários: uma em outubro daquele mesmo ano e outra em janeiro de 2013. Decidiu ir à segunda, pois estaria de férias da universidade. A vontade de ir nesta viagem era tanta, que se inscreveu sem ter o dinheiro para custeá-la por completo. Fazendo um planejamento, viu que tinha menos da metade da quantia necessária. Contou a alguns familiares e amigos o seu objetivo e estes abraçaram a causa e contribuíram até que o valor fosse suficiente.

Naquele momento, frente ao maior desafio de sua vida, o jovem recordava de seu desejo de estar lá, de todo apoio que recebeu, e de sua maior motivação: ajudar o próximo. Entrou no carro que estava à espera do grupo de voluntários de que fazia parte, e iniciou a jornada que transformaria sua vida, lhe dando uma nova visão de mundo. Era janeiro, e apesar do país estar no inverno, a temperatura em Porto Príncipe era de aproximadamente 38 graus, quando o jovem chegou com os demais 60 voluntários. Encontraram-se com um membro da JMM que estava lá desde 2010, com sua esposa e duas filhas, e pretendia permanecer durante dez anos. Ao encontrar os novatos, deu-lhes algumas orientações iniciais. “Ele explicou que ajuda humanitária é basicamente ensinar o outro a pescar, mas no caso da ajuda aos haitianos era muito antes disso. Era preciso ensinar a fazer a vara, pegar a isca, mostrar onde é o melhor lugar no rio para ele pescar, tudo mesmo. Vi que o trabalho seria bem a passos lentos, e que as mudanças seriam mais demoradas do que em qualquer outro lugar pobre do Brasil, por exemplo”, conta Filipe.

O trabalho dos voluntários seria feito nas comunidades de Porto Príncipe, onde mais da metade da população vive na miséria. Apenas uma pequena parcela tem melhores condições financeiras. Essa minoria é constituída, em geral, por funcionários do governo, e moram em mansões no alto das montanhas. O comércio retrata essa desigualdade. Só há um supermercado na cidade, e ele é frequentado por essa minoria de classe socioeconômica mais alta e por estrangeiros. O restante da população vive de comércio informal, escambo. As trocas são feitas nas ruas. Criadores de animais, por exemplo, trocam carnes entre si, para serem consumidas no máximo até o dia seguinte. Não há agricultura forte no país, pois o solo não é favorável para plantações.

Energia elétrica é rara em Porto Príncipe. A casa onde Filipe e alguns voluntários ficaram hospedados possuía essa regalia, graças a um gerador. Mesmo localizada em um bairro de classe média, quando anoitecia era a única que possuía eletricidade. “Não era nada luxuoso. Era uma casa simples. A JMM contratou duas mulheres haitianas para cozinharem o nosso jantar. Durante o dia estávamos nas ruas, então comíamos em alguma lanchonete. Essas mulheres tentavam amenizar um pouco o tempero. A comida dos haitianos é muito apimentada, mas como elas sabiam que somos brasileiros, sabiam que não estávamos acostumados. Estranhamos um pouco a comida das lanchonetes, pois o gosto era forte, e a limpeza precária”, lembra Filipe.

Outra atividade que os voluntários tiveram que adaptar durante a viagem foi o banho. A água gelada não incomodava, pois a temperatura ambiente era alta, no entanto, o tempo de duração predeterminado era um problema para quem não estava acostumado. Cinco minutos era o limite, e se alguém o ultrapassasse, era provável que faltasse água para os demais do grupo que esperavam para se banhar.

No dia seguinte, os voluntários iniciariam suas atividades. A vontade de ajudar não faltava, e as demandas também não. O projeto Por Um Novo Haiti atua com educação infantil, esportes e recreação e saúde. O grupo que tinha ido com Filipe era constituído por pessoas de diferentes profissões, desde médicos com vinte anos de carreira, arquitetos, estudantes e até pessoas que acabaram de sair da escola e decidiram usar o seu tempo para ajudar nesta missão.

Este grupo foi dividido em equipes de 10 a 15 pessoas e receberam uma programação de datas e horários onde atuariam durante três dias em cada comunidade. O intuito era ajudar nas atividades que já estavam acontecendo, lideradas por voluntários que estão lá a longo prazo, e fazer o máximo de coisas possível no tempo que tinham disponível. O transporte foi realizado por vans dos próprios haitianos, contratados pela JMM. Ao chegar às comunidades, era montada uma base de atendimento de saúde nas igrejas locais. A prioridade sempre era dada à saúde. Consultórios improvisados eram organizados, com lençóis e cortinas, onde os médicos e enfermeiros voluntários prestavam atendimento. Não havia hospital na região, e a população, informada previamente da presença de médicos, chegavam em grande quantidade. Foram realizadas consultas simples, entregas de remédios e em um caso específico, até uma cirurgia simples em uma criança, com a autorização de seus pais.

“Há uma demanda muito grande de profissionais da saúde naquele país. Ouvimos lá que alguns haitianos nasceram e morreram sem nunca ter tido contato com um médico. Por pior que a situação nessa área seja ruim aqui no Brasil, esse tipo de coisa é inconcebível. Lá a situação é bem mais precária”, afirma Filipe.

Os demais voluntários distribuíam senhas e organizavam os pacientes que aguardavam. Durante este período, os brasileiros eram orientados a conversar com eles, dar-lhes atenção e palavras de motivação. Também separavam remédios e distribuíam conforme orientação médica. Os medicamentos eram doações que eles mesmos levaram. Enquanto os pais eram atendidos, as crianças eram entretidas num momento lúdico. Os voluntários faziam brincadeiras, algumas educativas que davam orientações de higiene pessoal e de valores éticos e morais. Ao final era oferecido um lanche para cada uma delas. As crianças se divertiam muito e tudo era novidade. Havia um envolvimento emocional dos voluntários, pois era chocante ver crianças vivendo em situação tão precária. Outra equipe trabalhava com jovens e adolescentes através de esportes. Em algumas comunidades não era possível encontrar um espaço onde pudessem praticar estes esportes. Em uma delas, foi necessário utilizar o corredor de uma escola.

Através dessas atividades de recreação, eram ensinadas lições aplicáveis, que de assuntos que no Brasil são básicos para qualquer criança e adolescente. Orientações de civilidade, de como se comportar em sociedade, de respeito mútuo, etc. Na cultura haitiana, por ser precária em termos de educação oferecida pelo governo, este tipo de ensino não é oferecido. Nem mesmo nas famílias as crianças recebem este tipo de instrução.

A última atividade executada pela equipe de Filipe foi em construção civil. Em uma das comunidades, havia uma escola construída por uma missão norte-americana. Para ter acesso a ela, as crianças tinham que passar por um degrau com cerca de um metro, pois a base construída era alta. Os voluntários, então, decidiram construir uma escada. Comprando os materiais, e observando demais construções, Filipe, que à época era estudante de Engenharia, notou o quanto a ciência de engenharia de todo o país é retrógrada. Não eram encontrados alguns equipamentos básicos de construção, que seriam facilmente comprados no Brasil. As construções de todo o país eram feitas em procedimentos muito antigos e por isso não tinham tanta sustentação.

“Neste momento eu entendi porque o terremoto em 2010 causou tanta destruição. Os prédios e as casas são construídos de forma precária, pois lá a ciência da engenharia deles não é desenvolvida, as técnicas são muito ultrapassadas. Se terremotos de mesma magnitude acontecem em países como o Japão, por exemplo, não tem o mesmo impacto destrutivo, pois as construções são mais sólidas e preparadas para este tipo de catástrofe”, explica Filipe.

A vontade dos haitianos em conseguir trabalho era evidente. Durante a construção, dois homens se aproximaram e perguntaram se poderiam aprender o que eles estavam fazendo. Essas buscas por qualquer tipo de tarefa, já foram vistas pelos voluntários desde a sua chegada ao país. Já no aeroporto, foram orientados pelos coordenadores da missão de que seriam abordados muitas vezes por haitianos se oferecendo para carregar suas bagagens. As pessoas ficam, geralmente pelas ruas, à espera que algum tipo de trabalho apareça. O haitiano comum acorda de manhã e não sabe o que vai comer, ou se conseguirá algum trabalho, ele apenas quer sobreviver aquele dia. Outros montam comércios improvisados em frente a suas casas. Empregos formais, em geral, são oferecidos somente pelo governo, mas a corrupção é grande. Alguns funcionários contaram ao grupo de voluntários que só aceitaram esses empregos porque era a única alternativa que tinham para sustentar a si mesmos e suas famílias. Durante todo o período da missão, foram contratados policiais, em dias de folga, para fazer a segurança das equipes. Nesta missão em que Filipe estava aconteceu algo inédito: membros da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH), ofereceram-se para permanecer nas comunidades, fazendo a segurança dos brasileiros nas comunidades.

Em uma das comunidades, a MINUSTAH não pôde entrar. Informaram aos voluntários que ela ainda não estava pacificada. Filipe conta que o ambiente nesta comunidade era hostil e, apesar de não sofrerem nenhuma represália, percebiam que ela era comandada por alguma gangue. Ainda assim, conseguiram fazer o trabalho pela metade, pois foram impedidos de atuar com as crianças e os adolescentes. Nesta comunidade também, algumas mulheres, membros da equipe, foram muito assediadas. Com o trabalho finalizado, os voluntários puderam aproveitar as paisagens naturais. Visitaram o mar do Caribe, e viram que o país tem grande potencial de turismo. Alguns haitianos lhes contaram que sonham em ver seu país se reerguendo e recebendo turistas.

Após a experiência, Filipe constatou que o Haiti era um país que precisava de ajuda muito antes do terremoto, mas que as pessoas desconheciam sua lamentável situação, pois a mídia só passou a dar-lhe espaço após 2010. A devastação causada pelo terremoto foi pequena comparada a todo o histórico do país. O Haiti foi um dos primeiros países da América a conquistar independência, no entanto, essa independência foi conturbada. Através de violência, expulsaram de lá os colonos franceses, dominando o país através da guerra civil. Por uns 200 anos, nunca conseguiram ter um presidente que conseguisse cumprir um mandato. Mesmo sendo independentes, há a discordância entre si por causa da presença de muitas guerrilhas, gangues. Por causa desta política e economia fragilizadas e da corrupção do governo, o país não consegue se desenvolver e a população sobre com atrasos em tantas áreas.

Muitas campanhas foram iniciadas para arrecadação de dinheiro após o terremoto, mas a real necessidade deste país são pessoas dispostas a ir até lá e ensinar o que sabem, mostrar aos próprios haitianos que eles são capazes de mudar suas realidades. O haitiano tem pouca perceptiva de mudar de vida, adquirir conhecimento, estabilizar seu país e construir uma nova história. Por isso, é importante a ajuda de país mais desenvolvidos ou que estão em condições melhores nessa reconstrução.

Após passar quinze dias, doando-se em prol desta causa, Filipe volta para o Brasil com uma nova visão a respeito do Haiti, do seu próprio país e das pessoas ao seu redor. “Com esta experiência eu percebi que, por mais que tenhamos problemas aqui no Brasil, que precisam ser resolvidos, não se comparam aos do Haiti. O povo haitiano é muito carente, não só de recursos materiais, mas de uma visão de mundo que lhes ajude a superar suas dificuldades e recomeçar de uma forma diferente. Eu vi que comparando os dois países, aqui somos muito privilegiados, e que, portanto, mais pessoas deveriam ir para lá ajudar. O que precisamos levar a toda aquela nação é algo que se percebe na falta de brilho no olhar deles: esperança. Eu acredito que, ainda que demore, podemos construir um novo Haiti”, conclui.

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